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50 anos de Portugal Amordaçado: “A primeira história da oposição portuguesa”

Texto da autoria de José Manuel dos Santos, coordenador da Coleção “Obras de Mário Soares”, e Pedro Marques Gomes, investigador da Coleção “Obras de Mário Soares”

“Há uma coisa que devo afirmar com alguma satisfação de consciência: é que apesar de todas as injunções do poder e da mediocridade do meio, nunca transigi com as mentiras convencionais do sistema e nunca me rendi. Nunca, sobretudo, fui cúmplice da ditadura, nem mesmo pelo silêncio.” Assim escrevia Mário Soares, no seu Portugal Amordaçado, publicado em Paris, com o título Le Portugal Baillonné – témoignage, a 20 de abril de 1972, faz hoje precisamente 50 anos. E escrevera também: “Como socialista, penso, naturalmente, que os problemas portugueses só podem encontrar uma resolução completa mediante a instituição do socialismo democrático.”

“Depoimento inacabado” sobre os anos do fascismo, como o próprio o caracterizava, este não foi, todavia, um livro puramente autobiográfico de um grande oposicionista à ditadura ou um mero ensaio de análise política. Tendo ambos os géneros nele contidos, foi também, simultaneamente, mais um importantíssimo instrumento de combate político e um pioneiro livro de história, “uma obra magnífica, a primeira história da oposição portuguesa”, nas palavras do historiador A. H. Oliveira Marques. Soares era, de resto, licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Mário Soares começou a escrever o Portugal Amordaçado em 1968, quando, por ordem de Salazar, foi deportado, por tempo indeterminado, para S. Tomé, onde acaba por ficar até à queda do ditador e à sua substituição por Marcello Caetano. Continua a escrevê-lo em Paris, onde se exila em 1970, após a conferência de imprensa que Realiza em Nova Iorque, no Overseas Press Club, em que uma vez mais denuncia o regime e, particularmente, a sua política colonial. Escreve-o também na aldeia italiana de Piediluco, em casa do seu amigo Mário Ruivo.

Fundação Mário Soares e Maria Barroso/Arquivo Mário Soares

Na obra, o autor traça o retrato do país que era então Portugal, o seu atraso relativamente a uma Europa a desenvolver-se, o “fenómeno” Humberto Delgado e tudo o que lhe seguiu, a guerra colonial e as várias movimentações das oposições ao regime. Anos mais tarde, afirmou que pretendeu escrever um “livro congregador”, num contexto em que pretendia tornar-se “um político com credibilidade, força e com relações para poder vir a derrotar Caetano, no futuro”. Era essa a perspetiva que tinha, do exílio. O livro era mais uma peça de uma luta que travava há décadas e que o levara a ser 12 vezes preso. Soares tinha, como escreve e afirma neste seu livro, uma “vontade decisiva de vencer”, a “certeza de que só é vencido quem desiste de lutar”.

Escrevera-o “com determinação, sempre de jato e de memória, embora com grandes interrupções”, recordou, anos depois. Quer na deportação, quer no exílio, teria poucos ou nenhum livro à sua disposição, sobretudo tendo em consideração a diversidade de temáticas referidas no longo volume e o detalhe com que as abordou.

A escrita desta obra fundamental da literatura política portuguesa terminou em fevereiro de 1972 e, sendo impossível publicá-la em Portugal, foi editada em Paris, pela editora Calmann-Lévy, de Alain Oulman, numa versão condensada, da qual foi necessário retirar múltiplas referências especificas do contexto português, reduzindo o texto a menos de metade. O livro completo, em português, com mais de 700 páginas, foi dado à estampa já em liberdade, em outubro de 1974, editado pela Arcádia, com o título Portugal Amordaçado, depoimento sobre os anos do fascismo. O combatente de sempre contra a ditadura lutava, naquele momento revolucionário, pela construção de uma democracia pluralista para Portugal.

Ao longo dos anos, este livro dos livros de Mário Soares foi traduzido para várias outras línguas: inglês, espanhol, italiano, alemão, grego, chinês. Cerca de 25 anos após a publicação da obra, o autor confessou um projeto que tinha em mente e que acabou por nunca concretizar: “Quero um dia reeditá-lo, tal qual, mas fazendo notas de pé de página e introduzindo uma ou outra correção e referências relativamente a dúvidas sobre determinados factos controversos. Sem mudar a visão de fundo.”

Este ano, assinalando os 50 anos da sua publicação, será publicada, na Coleção “Obras de Mário Soares”, uma edição crítica do Portugal Amordaçado. Editada pela Imprensa Nacional, será uma obra minuciosamente anotada, acompanhada por mais de uma centena de cartas inéditas que a publicação do livro então suscitou e que se encontram no Arquivo Mário Soares, na Fundação Mário Soares e Maria Barroso.

Cumprir-se-á, assim, a vontade de Soares de reeditar o livro, que foi, nas suas palavras, “o contraponto da propaganda oficial” do regime e, por isso, uma arma política. Ou, como lhe escreveu, numa carta, Eduardo Lourenço, ao receber um exemplar da obra: “O seu livro é o romance político da nossa geração e de agora em diante o espelho em que cada membro dela é obrigado a rever-se para descobrir os fios da sua própria aventura.”

#50anos25abril